Entrevista com o grafiteiro Raiz

byJFParanaguá

Grafiteiro Raiz na sede do Musas

O grafiteiro Raiz (Raí Campos) nasceu na localidade de Piatã, município de Paulo Afonso, estado da Bahia, mas tem suas origens artísticas manauenses. Fiel as suas convicções, ele procura através dos seus trabalhos expressar sua luta incansável pela preservação da Floresta Amazônica, pelo respeito aos índios e contra o desmatamento. Lendo abaixo a entrevista que fiz com ele no Musas (Museu Street Art de Salvador), saiba mais detalhes sobre sua trajetória artística. (Fotos: byJFParanaguá, Douglas Correa e do Facebook do entrevistado).

byRena Peixe-boi

Raiz e este blogueiro durante a entrevista no Musas

A Arte na Rua – Por qual motivo você foi morar em Manaus?

Raiz – Meu pai conseguiu emprego na Mineração Tabocas do Grupo Paranapanema, maior exportadora de estanho, localizada na Vila Pitinga, dentro de uma reserva indígena, interior de Manaus. Depois do meu nascimento, minha mãe e eu tivemos que nos mudar pra lá. A vila tinha excelente infraestrutura. Estudei numa escola em que o ensino foi pelo método Pitágoras. Cresci numa vila que tinha seus problemas, mas sem violência, sem prostituição, afastado da civilização moderna. Imagine a minha emoção ao colocar os pés fora de casa e me deparar com a floresta amazônica ao meu redor.

Nota 1: Vila Pitinga é um povoado do município de Presidente Figueiredo.

AAR- Qual o nome da reserva indígena?

R – Wai…

AAR – Pode dizer letra por letra?

R – W A I M I R I A T R O A R I. Não sei qual foi o desenrolar da história, mas houve uma fusão entre os índios Waimiri com os Atroari, formando a denominação Waimiri Atroari. Essa tribo sofreu muita pressão por causa da construção da rodovia BR-174, que liga Manaus (AM) a Boa Vista (RR) e atravessa a reserva em direção à Venezuela e outros destinos. A decisão de construir a rodovia passando por dentro da reserva causou muito sofrimento e reduziu a população indígena.

Nota 2: Além da construção da rodovia e da hidroelétrica de Balbina, os conflitos entre madeireiros e mineradores fizeram com que a população fosse reduzida para aproximadamente 380 indivíduos.

AAR – Você esteve alguma vez na tribo?

R – Sim. Eles são até hoje inspiração para os meus trabalhos. Eu tive a oportunidade de conhecer a tribo pela primeira vez aos 13 anos de idade, durante um passeio escolar. Foi uma sensação diferente sentir o calor deles. Recordo-me até hoje quando desci do ônibus e observei que eles estavam em fila por ordem de tamanho, do maior para o menor. Todos pintados: adultos, crianças, jovens e idosos. Pensei que estivessem aguardando a gente. Mas fiquei sabendo que eles estavam reunidos para os preparativos da festa do nascimento do milésimo Waimiri Atroari. Na época a população contava com 999 índios.

Nota 3: O milésimo Kiinja (pronuncia-se “kinhá”), como os Waimiri Atroari se denominam, é filho de Anapidene e Ketamy e foi visto como um marco na recuperação da tribo.

AAR – O que lhe marcou na visita?

R – Pô, cara! Dois fatos. O primeiro foi uma índia com os peitos quase caindo na chapa quente durante o preparo de um beiju gigante feito de tapioca pra mim. Ela não estava nem aí! (Risos). O segundo, a visita mudou muito minha vida, sabe? Mudou a minha percepção com relação aos índios. Infelizmente outros alunos que foram não tiveram essa mesma percepção. Eu não consigo entender porque nos dias atuais ainda rola muito preconceito com os índios.

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AAR – Então a origem da sua arte surgiu a partir dessa visita?

R – Sim. Eu fui criado dentro do mato, cara! Eu não tive contato com animais de estimação até sairmos de lá. Era proibido criar qualquer animal doméstico por causa de onça. Ela aparecia ao sentir o cheiro de cão, gato ou outro animal, ou lixo colocado na área externa da casa. Então, alguém da vila imediatamente dava o aviso: “Atenção! Tem onça rondando pelo local (risos). Vivi no meio de muita árvore, vendo muitos tucanos, araras, macacos, jacarés. Pra mim, tudo isso foi uma coisa normal.

AAR – E o grafite, como surgiu?

R – O meu envolvimento com o grafite foi o seguinte… Na verdade iniciei como pichador na Vila Pitinga.

AAR – Você ficou sabendo da pichação através de noticiário na TV e/ou rádio?

R – Não foi a partir de notícias na televisão. Em Pitinga, na época, não existia essa parada. As lojinhas existentes na vila vendiam apenas roupas e alguns CDs, tipicamente produtos sertanejos. Rolava muito forró, música brega. Certa vez, um brother das antigas começou a andar de skate na vila, usando roupas largas e ouvindo músicas de rap. Essa atitude motivou que a galera copiasse a ideia. Daí surgiu um grupo de skatistas.

AAR – E você como entrou na cena?

R – Na época estava com 10 anos. Os dois principais membros da galera eram meus vizinhos e moravam atrás da minha casa. Eu lembro bem dessa cena como se fosse hoje. Comecei a escutar um som do rap da janela do meu quarto. Os quintais das casas eram colados e não havia muros. Notei que eles montaram vários compensados no chão do quintal criando uma pista de skate. Nesse dia, eles convidaram alguns amigos pra brincarem. Fizeram várias manobras. E eu curtindo tudo aquilo, ouvindo a conversa entre eles, a música, a batida do rap, o ritmo tic, tac, tum… Beleza! Que parada massa! (risos). No dia seguinte a curiosidade me fez olhar atrás da minha casa e notei vários riscos, desenhos de bonecos com boné, calças largas, tudo feito de carvão, velho! Eu achei massa os desenhos!

AAR – Então começou a partir daí?

R – Não. Eu tive o primeiro contato com as tintas através de meu pai. Como ele era o pintor da comunidade, eu o ajudava nas pinturas de lojas, aberturas de logos, mensagens em placas, etc. Mas quando vi o que a galera fez, percebi que mexeu comigo e pensei: “Caramba! Vou fazer isso!” Então chamei meu pai pra mostrar, porém ele ficou mordido, com muita raiva, velho! Eu não entendi. Achei que ele ia gostar, no entanto a reação dele foi outra. Não gostou do que viu. Mas eu estava a fim de fazer aquilo, entendeu? Devido à reação dele fiquei longe da galera, principalmente após me recomendar: “Fique afastado desse tipo de pessoa”. Apesar da postura durona ele me incentivou bastante com a arte. Hoje eu entendo a preocupação do meu pai.

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AAR – Qual foi a sua reação?

R – Eu comecei a trocar ideias com um dos garotos que estudaram comigo. Ele já entendia sobre skate e rap e aprendeu com o irmão dele que era um dos skatistas, morador de outro bairro. Certo dia, ele me mostrou uma revista de Hip Hop com muitas imagens de grafites e muitas outras coisas massa. Não resisti e falei: “Você pode me emprestar essa revista?” Levei pra casa e comecei a copiar as letras, os desenhos. Um dia, remexendo a caixa de materiais de meu pai encontrei uma lata de spray. Pressionei e achei legal aquilo. Pensei: “Dá pra fazer uma letra”. Então, do lado de fora da minha casa risquei uma letra. Ficou massa! Empolgado com o resultado me aventurei a riscar um boneco com boné no chão do outro lado da casa. Meu pai apareceu e gostou do trampo. Disse-me apenas: “Não pinte o chão da casa pelo amor de Deus (risos)”. Como era muito difícil ter acessar ao spray e também não tive muita informação, eu acabei continuando no rap, envolvendo-me mais com skate.

AAR – O que aconteceu em seguida?

R – Nesse período fiz um curso de informática e, coincidentemente, o cara que ficava ao meu lado era o mesmo que fez os desenhos no fundo da casa, velho. Era uma figura tranquilaça, mas eu ficava com medo de falar com ele. Descobri que o apelido dele era “Velho ou Velhão”. A galera o chamava assim por causa da sua uma aparência meio gringo, brancão, cabelo loiro, olhos claros. Mas o cara era gente boa. Na época eu tinha 11 anos e ele 16, mas com aparência de 18 ou mais. Certa vez observei na camisa dele um desenho muito legal e aproveitei para copiar. Depois de pronto mostrei pra ele. “Olha aí Velho como ficou!” E comentou: “Tá massa! Tu manjas bem; tu gosta, né cara?” Então começou a riscar umas letras pra mim. Mas depois desse dia sumiu. Continuei no rap, fazendo desenhos no caderno, não tinha outro jeito. Certa feita, minha mãe pirou ao olhar a minha apostila do terceiro ano e perceber que não havia nada escrito, nenhuma anotação escolar, somente desenhos. Cara, eu não copiava nada que o professor ensinasse em sala de aula. Às vezes, eram as meninas da minha sala que copiavam, dando uma força (risos). Foi através de um trabalho escolar sobre o Carandiru que voltei a pegar em spray.

AAR – Você se refere ao Complexo Policial de Carandiru em São Paulo?

R – Sim. O Carandiru foi o tema do trabalho de Ciências escolhido pela minha turma pra apresentação. Falar sobre o cotidiano da galera, a história de Carandiru. Montamos na sala um ambiente como se fosse uma cela, utilizando uns tecidos TNT. Com ajuda do grupo comprei algumas latas de spray pra fazer uns riscos no TNT, com ideia de criar um ambiente bem urbano no interior da cela. Fiz vários riscos, bonecos, ficou legal. Foi um sucesso o trabalho. As latas que sobraram levei pra casa. Um dia, estava sentado no sofá da sala assistindo TV, de repente surge uma imagem de um grafite. Senti o sangue ferver nas veias! Então, comentei comigo mesmo: “Caramba! Eu vou fazer um grafite no meu quarto”. Olhei a parede e não pensei duas vezes: Peguei o resto de tinta que sobrou do trabalho e comecei a fazer um R, bem desenhado com duas cores, sendo um branco e um vermelho com contornos em preto. Gostei do resultado. Agora vou fazer o A, o I, tipo um grafite mesmo e….

AAR – Você fez um bomb?

R – Isso mesmo. Aí eu botei a sombra, contorno, gota, pingo… Enchi a casa de fumaça, tinta, mas ficou legal velho! Depois daquele dia eu falei: “É isso aí! Gostei disso, da tinta no dedo, do cheiro, da sensação que vivi…”.

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AAR – Seus pais curtiram a ideia?

R – Durante a pintura fiquei com medo de minha mãe chegar. Mas, caso ela ou meu pai não gostasse a pintura já estava feita. A partir daí comecei a agitar na escola fazendo pichos, rabiscando de canetinha as paredes e portas dos banheiros. Como os colegas me chamavam de Rai, eu tive que procurar outro nome. Primeiro gostei de Roof. Mas optei depois por Crooks. Essa palavra eu ouvi numa música de rap. Nem sabia o significado. Tinha seis letras e eu gostava de nomes assim, bem agressivos. A direção da escola já sabia que era eu o autor dos pichos, mas não podia fazer nada porque não era o meu nome que estava nos locais. Quando a galera avisou-me que a direção da escola estava a fim de me pegar, então mudei de nome novamente. Entretanto, não deu pra continuar porque passei no vestibular.

AAR – Os atos de vandalismo foram praticados somente na escola?

R – Era muito arriscado, perigoso eu ir pichar na rua. A maioria dos moradores da vila me conhecia. Nem me aventurei a pichar pela madrugada. Era uma vila, velho! Além disso, o risco era muito grande. Caso fosse visto ia rolar comentários, do tipo: “Olha lá quem fez o risco. É o filho do Guerreiro… O Guerreirinho”. (Risos). Com certeza meu pai seria informado. E poderia até ser demitido da empresa por minha causa. Rolava essa parada se o filho aprontasse alguma.

AAR – Naquela época havia facilidade pra encontrar o spray na Vila de Pitinga?

R – Sim. Era vendido numa loja de tintas pra carros e bicicletas. A lata custava 10 reais. E só encontrava nas cores: preto, amarelo, vermelho e o azul. Como a venda pra menores era proibida, então eu pedia a meu paipra comprar, alegando que seria usado na pintura dos desenhos.

AAR – Você se considera o pioneiro do picho na Vila de Pitinga?

R – Não. Foi um brother mineiro, por sinal um grande amigo. Ele pichou muitas letras em Minas Gerais e iniciou essa parada antes de mim na vila. A diferença é que eu comecei a fazer muitos, tornando-me um viciado no picho (risos). Riscava em placas, nos bebedouros, mas tudo com a tal canetinha.

AAR – Que tipo de canetinha?

R – Olhe aqui (mostra-me uma caneta marca Pilot). Além da canetinha, eu também usei o hidrocôr, giz e carvão. Curtia vê o meu tag Roof em vários lugares. Mas, assim que a galera passou a citar o tag, tratei de mudar pra Crooks.

AAR – Em Manaus rolou algum picho nessa fase?

R – Não. Ia a Manaus uma vez por ano acompanhando minha mãe numa consulta médica. Acostumado à tranquilidade da vila, passar três dias em Manaus, era um tormento: Muito carro, muita gente, muita pobreza. Mas tive de me acostumar (risos). Certa vez, eu vi numa banquinha de revistas um grafite na capa de uma publicação. Comprei logo um exemplar. No mês seguinte comprei outra. E quando alguém ia pra Manaus eu mandava um dinheirinho pra trazer outra. Foi assim que eu comecei a entrar no universo do grafite. Passei a pesquisar várias coisas, conhecer a galera. A surpresa maior foi encontrar em um dos exemplares da revista uma matéria sobre grafites em Manaus. A gente só ouvia falar muito dos grafiteiros de São Paulo, Minas e Rio. Para o lado de cá do Nordeste nada. A matéria falava sobre a realização de um evento em Manaus, e citava o nome de todos os grafiteiros que iam participar. E Árab era um deles.

AAR – O grafiteiro Árab é uma referência na região?

R – Ele é considerado o precursor do grafite em Manaus. Eu tomei conhecimento da existência de Árab, através das minhas pesquisas. Primeiro por meio do Orkut com muita dificuldade. A internet em Pitinga era do tipo 16K. Muito lenta. Pra abrir uma página demorava… Vou dar um exemplo: “A gente dava um clic, ia até a cozinha, voltava e a página continuava carregando (risos)”. Era terrível. Mas, apesar dessa demora continuei a pesquisar sobre Árab, com a finalidade de conhecê-lo mais e trocar ideias, do tipo: “Você é uma figura muito legal! Acho você massa! Como é pra eu ir até aí? Quero lhe conhecer?” Mas nada de resposta. Cheguei até a pensar: “Pô! O cara não dá bolas pra turma do interior”. Mesmo assim, quis conhecer a pintura de Manaus, porque a revista passou a divulgar muita gente nova.

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AAR – E o Fotolog? Esse tipo de mídia teve um papel importante na divulgação e interação entre os internautas.

R – Sim. Muito importante. Através do Fotolog conheci dois brothers que me convidaram pra ir até Manaus ver um evento de grafite. Eles me receberam muito bem. Foi demais! Vi muita gente pintando. Troquei muitas ideias com os caras. Fiquei no maior êxtase. Paranaguá era a primeira vez que estava na cidade sozinho vendo uma parada que eu mais gostava. Também rolou muito hip hop. Vi “minas” grafitando. Nunca tinha visto mulheres grafiteiras. Pra mim foi uma grande surpresa.

AAR – Com todo esse êxtase não deu vontade de pintar?

R – Não. Fiz uma pintura rapidinha em outro lugar. Por sinal, muito feia (risos). Voltei pra o interior naquela, meu irmão! Com muita vontade de me dedicar mesmo. Retornei a Manaus pra cursar a faculdade de Engenharia da Computação na Universidade Estadual da Amazônia (UEA). Dias depois da minha chegada procurei pelo brotherBulk que conheci no evento. No dia que a gente se encontrou, ele foi logo dizendo: “E aí, velho! Vamos pintar?” Respondi: “Agora mesmo”. Ele hoje em dia é o meu mestre. Foi o cara que me botou na tinta, que tenho maior respeito. Com ele fiz a primeira pintura. Seu personagem que é um bonequinho está estampado em vários locais da cidade.

AAR – Como foi a pintura com Bulk?

R – Muito legal! Passei o final de semana pintando na companhia dele e de outros grafiteiros da Crew, inclusive fiz parte dela. Eles se amarraram no meu personagem um bonequinho verde com a cabeça cortada, os olhos brancos, mas sem visão, muito simples. Muito mais simples do que esse aqui (uma tela com o grafite do personagem), apelidado pela galera de ET.

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AAR – Como surgiu o personagem?

R – A inspiração surgiu em 2008, quando fui visitar uns parentes meus em João Pessoa. Antes de viajar procurei manter contatos através do Orkut com uma comunidade de grafiteiros e, fiz amizade com Ross. Quando eu cheguei à cidade vi grafites de personagens de um lado e do outro da rua. Eu pirei velho! “Caramba! Como a galera daqui explora personagens! Vou querer fazer também”. Então, a parada do personagem surgiu a partir dessa visita a João Pessoa. Gosto de fazer letra, mas o personagem pra mim foi o que sempre imaginei. Uma semana depois fui pintar com Ross. O cara tem várias pinturas pela cidade. Quando nos encontramos, ele disse: “Mano nós vamos pintar na Epitácio Pessoa, com muita gente daqui e de São Paulo”. Ele nem procurou saber se eu pintava bem ou não, mas me recebeu como se eu fosse um bom grafiteiro.

AAR – Você pode me dar mais detalhes sobre o seu personagem?

R – É como te falei. Eu já fazia um boneco com uma cabeça verde. E achei incrível como as coisas foram surgindo pra mim. Assim como o nome, o desenho do personagem, muitas coisas foram fluindo. Criei o personagem da cabeça verde. Ele era muito simples, só a cabeça, não tinha braço, somente um pequeno pescoço. A galera começou a falar: “É o menino que faz o ET”. “É o menino que parece um ET”. Eu parecia um ET mesmo e não me sentia parte da sociedade. Sentia-me diferente. Não pensava como a galera. Por isso começaram a dizer que eu parecia com um ET (risos). “Esse bicho é todo diferente”. “Esse cara não é daqui não, é um alienígena”. Essas colocações foram fazendo sentido. Eu não tenho a pintura, mas quando citei lá atrás que comecei a me dedicar a pintar todos os dias, que estava sentindo umas transformações em minha vida, isso aconteceu a partir do convite pra participar de um evento no bairro de Santo António em Manaus. Lá, fiz uma pintura na parede da escolacom a cabeça do personagem em tom de verde. Procurei fazer um desenho em 3D mais elaborado. Através do spray procurei aperfeiçoar, aplicar sombras, luz… Foi assim que surgiu. Outro dia é que vim notar que o desenho que fiz desse personagem em Santo António, tem a boca e a cabeça aberta de onde saem várias coisas, segurando uma placa com dizeres rastafári. Hoje, fazendo uma reflexão, eu percebo que, na época, a pintura que fiz do personagem foi uma forma que encontrei de levantar uma bandeira de luta…

AAR – E que bandeira é essa?

R – Da necessidade de lutar contra o desmatamento.

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AAR – Por quê?

R – Um dia passo por uma rua e lá está uma árvore, no outro já não está mais. Ou então, uma área com várias árvores derrubadas para construir residências. Em Manaus, por exemplo, até as árvores das praças, que serviam pra amenizar o sol escaldante foram cortadas pela prefeitura e ninguém disse nada. Então comecei a fazer protestos desses descasos através do meu personagem.

AAR – Você já assinava Raiz em seus grafites?

R – Não. Em Manaus, depois de algum tempo passei a assinar Rai. Mas, em João Pessoa eu assineicomo Crooks. De retorno a Manaus, passei a pintar uns dias e outros não, preocupado com os estudos na faculdade. Aproveitei para conhecer outras pessoas que me deram muitas dicas, informações; assisti vários documentários de diferentes assuntos. Voltei pra Manaus, mas algo me deixou inquieto.

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AAR – Qual foi o motivo da inquietação?

R – Desde 2009, até hoje, morando na cidade não me adaptei a muita coisa errada que presencio. E me questiono até hoje: “Por que estão matando a floresta, desmatando árvores…?” Sempre acreditei na existência de Deus, sempre acreditei em algo superior em que sua mão vai guiando. Tenho um irmão que é rastafári e percebi que ele pensa como eu. Luta por uma verdade que eu acredito. Recuperado de uma hepatite mudei completamente a minha vida, procurei viver melhor. Fiquei por um período de seis meses sem pintar. Quando decidi voltar, convidei um amigo e fizemos vários bombs em dias diferentes, mas não assinava meu nome, porque a minha intenção era de praticar vandalismo, pichar frases pedindo mais amor, menos cobras… E isso atiçava muito a galera, chamava muita atenção. Eu agitei. Pichei escolas, igrejas, delegacia, lojas. Foram muitos espaços.

AAR – Você conheceu muita gente nesse período?

R – Conheci muitos grafiteiros. Eu saia às seis horas da manhã pra começar a pintar e só retornava por volta das 10 da noite. Frequentava a faculdade todo sujo de tinta. Foi uma fase difícil, de muitos cálculos. Eu já não suportava mais frequentar o curso. A vontade era de estar na rua pintando. Mas, devido meu pai ter sido desempregado as coisas mudaram e tive que ajudar em casa fazendo alguns trampos comerciais.

Você concluiu o curso?

R – (Risos). Não. Eu estava estudando mais por desejo de minha família. Na verdade nunca foi a minha. O certo é que descobri a tempo que o grafite era o que queria fazer. Entretanto, tive receio de comentar com meus pais. Então pensei: “Vou bolar alguma coisa pra falar com eles. Passei a fazer vários trabalhos comerciais”. E surtiu efeito.

AAR – O que levou você fazer a inversão da letra R no seu tag?

R – Eu sempre achei difícil fazer pichação com letras bem estilosas. O nome RAIZ é um pouco difícil de ter uma simetria. Tem um R que mais parece um A, um I que é um tipo bastão e um Z que não tem nada a ver com as outras duas letras. Sempre achei uma dificuldade tentar trabalhar uma simetria, um desenho com estilo de uma letra. Um cara, por exemplo, tem o tag ARARA, que é um nome legal de se fazer. Tem três A e mais dois R. Assim dá para trabalhar. Porém, RAIZ não é uma parada que me facilitasse desenvolver. Então, pra quebrar pelo menos o padrão eu botei um R ao contrário, dando a ideia de um Z. Passei a usar, transformar e evoluir a forma de escrever. Mas em Manaus eu não assinava muito o tag, porque a galera batia o olho e identificava de quem era a pintura.

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Centro Histórico do Recife

AAR – Você foi abordado alguma vez pela polícia?

R – Vixe! Várias.

AAR- -Quais foram as que marcaram mais?

R – Uma vez quando fui pintar com um brother. Era a primeira vez que ele ia fazer um trampo. Ao começar a desenhar o boneco lembrei-me que nas compras dos sprays, esqueci as bisnagas. Ao retornar da loja, o brother me contou que um dos meninos de rua que fica no farol (semáforo) pegou um rolo, enfiou na lata e riscou a parede. De repente, percebi que parou um carro da polícia com um oficial, depois apareceu outra viatura com uma galera portando metralhadoras e dirigindo-se pra mim disse com agressividade: “Vai, vai logo…”. Eu não entendia porque aquela abordagem. Fiquei assustado, em estado de choque. Então procurei me acalmar e tentar conversar: “Calma aí meu irmão!” Mas não quiseram me ouvir e um deles falou: “Não vou levar vocês, mas vou recolher todo material. Aí o meu amigo virou pra mim e disse: “Vamos embora daqui”. Respondi: “Não. Isso não vai ficar assim!”. Então dirigi-me a viatura e próximo à janela falei: “Irmão, espera aí! O muro está abandonado. Aqui não é uma área privada. Vai levar o material?”. Eles perceberam a segurança do meu argumento, aí um deles me disse: “Olhe recebemos uma denúncia, viemos averiguar e encontramos vocês pintando o muro”. E apontou para o picho. Retruquei: “Não fomos nós que fizemos isso, mas um moleque que fica no farol”. A resposta dele foi a seguinte: “Agora não vou devolver o material. Depois vocês passem no Posto Policial pra pegar”.

AAR – Vocês tiveram coragem de ir ao Posto Policial?

R – Nem esperamos pra depois. Fomos logo, porém eles ainda não haviam retornado. À noite, apesar do receio, o meu amigo esteve no Posto e encontrou os tais policias. Dei muitas risadas ao me contar o que rolou. Após ele ouvir muita bronca e mandar abrir uma porta, o policial falou: “Vá logo! Você tem 30 segundos pra pegar tudo”. Assustado foi até o local reuniu o máximo de sprays e na saída ainda ouviu em tom de brincadeira a advertência: “Pare de pichar!”.

Em outra abordagem eu estava com Rena ou Renatinha, como chamo carinhosamente minha mulher. Ela me fazia companhia pela primeira vez em um rolê vandal. Eu não ia pintar, mas ao passar por uma clinica abandonada notei um bomb na cerâmica. Achei aquilo demais velho (risos), porque não dava pra limpar. Eu não queria pichar na clinica naquele momento, mas mudei de ideia e fui pintar. Escolhi um lugar na parte baixa e comecei a abrir minha letra. Aí a Renatinha avisou: “Tá vindo uma viatura da polícia!” Disse-lhe: “Fica calma aí Renatinha!” E continuei. Pra não deixar só no risco fui enchendo de cor o bomb. Sempre procuro espalhar muitas latas no chão, a fim de que as pessoas pensem que vou fazer um trabalho legal. Quando eles chegaram próximo já estava quase pronto. E foram logo perguntando: “Ei, rapaz? Quem foi que autorizou?” Eu não pareipra olhar quem estava falando comigo. Continuei pintando e expliquei que o que eu estava fazendo ali era certo.

AAR – Você foi muito corajoso ao continuar a pintura?

R – É o seguinte, cara! Tudo depende muito da energia que você transmite. Por exemplo: Quando um cão percebe que você está com medo ele vai sentir, então rosna com ferocidade; mas, se perceber que você está triste ele vai chegar perto de você maneiro, sacou? Então, policial é a mesma coisa. Se eu ficar com medo ele vai perceber o meu medo e parte pra cima de mim. Então eu tenho que mostrar que estou calmo e que aquela parada é legal, porque não estou agredindo e nem estou pegando nada de ninguém. Eu tenho que demonstrar isso. Ali era apenas uma pintura em um lugar abandonado. E continuou falando estressado comigo. Se por acaso ele quisesse me levar pra delegacia eu ia. Minha maior preocupação era a Renatinha. E continuei a pintura. O outro policial falou: “Esse local não está abandonado”. E bateu na porta da clínica. No imóvel vizinho apareceu alguém dizendo: “Tem vigia aí. Esse moleque chegou pra bagunçar!”. Pensei: “Que papo é esse desse cara!?” O policial bateu novamente até que surgiu o vigia, alegando que estava dormindo, com expressão assustada ao notar a presença da polícia. Ele ficou surpreso com aquela situação. Enquanto o policial batia na porta eu não parei a pintura. O outro policial olhando pra mim perguntou ao vigia: “Ele tem autorização?! O vigia falou: “Não”. Olhei pra ele e disse: “Olhe velho, é o seguinte: Me desculpe. Eu nem sabia que tinha alguém no imóvel. Você pode olhar o que fiz?”. A minha intenção foi de mostrar pra o vigia e ao vizinho que eu não estava ali pra causar nenhum problema. Um dos policias contrariado falou: “Se eu encontrasse você de madrugada riscando o muro da minha casa eu colocava você no porta-malas do meu carro e a gente ia dar uma volta”. Não pensei duas vezes e respondi: “Meu irmão eu fico muito triste de ouvir uma parada dessa de você, um policial que está aqui pra me proteger…” Paranaguá, eu não jogo sujo com ninguém. Nem com a polícia. Meu jogo é limpo. Percebi que o outro policial não gostou da atitude do colega. Ele ficou com vergonha. Por ser o mais velho não precisava fazer aquele show. Notou que a abordagem foi errada. O outro era mais novo, mais educado. Dirigiu-se pra mim falando: “Vou precisar do seu nome e do seu número de RG. Caso o dono do imóvel faça uma denúncia vou entrar em contato pra você pagar o prejuízo”. Minha maior frustração de tudo isso foi saber que Renatinha não filmou toda a cena (risos) pra depois fazer um video. Eu ainda disse pra ela: “Meu irmão liga essa câmera! Aproveita o lance!”. Ela só filmou um pedacinho da saída da viatura. Mas fez algumas fotos. Pra você ter uma ideia, o lugar ficou por um bom tempo abandonado.

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Raiz contempla seu personagem pintado numa das colunas da Avenida Contorno, Salvador

AAR – Você fez picho em outro local?

R – Não. Decidimos retornar pra casa. Mas, no caminho a gente encontrou algumas folhas de compensados usados em boas condições jogados em uma área. Falei pra Rena: “Caramba, o que é que a gente faz com isso?” Então, decidimos pegar. O material como era pesado, a gente andava e parava pra descansar. Daí um brother me ligou: “Velho! Estou aqui com a galera perto da casa de vocês ouvindo rap…”. Respondi: “Meu irmão, massa! Mas pega a rua tal, que estamos com umas folhas de compensados.” Ele e a galera apareceram logo. Contei sobre a cena da casa abandonada e o lance da polícia. E um dos que ajudou a carregar as folhas, é o cara que agita o bomb em Manaus, marcando vários espaços. O nome dele é Mafia. Assim que terminei o relato, ele falou: “O quê?!” E se mandou. Paranaguá, quando passei no outro dia em frente a clinica notei que a vidraça e as paredes estavam todas pichadas. Ele depois me contou sorrindo: “Pô, cara! Você não me falou sobre o vigia dentro da casa”. (Risos).

AAR – É a primeira vez que você vem a Salvador?

R – Sim. A gente ficou apaixonado pela cidade.

AAR – O que você achou da cena de Salvador?

R – Fiquei impressionado com o trabalho desenvolvido através do Projeto Salvador Grafita. Foi um grande passo para a liberação de intervenções na cidade. Como aconteceu isso, a galera pintou em vários lugares. Tem muitos artistas bons. A cena do bomb é fortíssima. Observei várias vertentes do grafite. Os painéis são mais aceitos pela sociedade. O picho daqui, por exemplo, tem um estilo próprio, bem diferente, é do tipo esticadinho. Dou maior valor a esse tipo de estilo dos caras.

AAR – Você percebe muita diferença com os Belém e Manaus?

R – Existe sim. Em Belém, onde surgiu a pichação do Norte do país, esse movimento ganhou espaço através da galera do punk e surfistas que viajavam para o Rio e São Paulo. Eles não copiaram o estilo desses locais, criaram a própria letra, que por sinal acho a mais bonita do Brasil. Na verdade, eu não conheço Belém. Renatinha é que conhece. Ela contou que a entrada da cidade é toda pichada. Eles ocupam todos os espaços com letras enormes. Gastam duas ou três latas de spray num picho só. O histórico de lá é de muita gang. A pichação é basicamente marcação de território. Não picham para ter a fama de pichador, mas para marcar, atazanar os outros. A competição é muito grande. Os pichos são feitos um por cima do outro. Um faz na cor vermelho, o outro passa o preto por cima. Não tem essa de respeito. A ética deles é o combate que dura muito tempo. Por exemplo: Se alguém perguntar para qualquer membro de uma gang: “E aí! O que você acha da pichação de São Paulo?”, A resposta é a seguinte: “Sei lá de pichação de São Paulo”. Eles não se interessam. Só se ligam na cultura deles, da marcação. Não estão nem aí pra o estilo dos outros, ou com a cena de outros locais.

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Intervenção com Júlio e Bigod (Nova 10Ordem) e Tial, Ladeira da Preguiça, Salvador

AAR – E sobre Manaus?

R – Na época, eram feitos pelos arruaceiros. Quando Arab se mudou pra Manaus levou o picho. A primeira iniciativa dele foi ir atrás dos caras pra tentar uma aproximação, do tipo: “Sou de Belém e estou morando aqui. Vamos sair pra pichar?” A resposta era: “Não. Ser pichador, não!”. Demorou um tempo, mas conseguiu. Também tinha o estilo bolado que é o mais antigo. E surgiram outros mais novos. Infelizmente muitagente não se preocupou em divulgar a cena, fazer conexões com outros lugares, pra ser reconhecido no cenário nacional. Pouca gente sabe e pensa que não existem bons grafiteiros em Manaus. Vou dar um exemplo: Já tem alguns anos que estive numa das cidades do Nordeste pra participar de um evento, mas a galera não foi muita receptiva comigo. Faziam muitas perguntas: Quem é esse cara? Ele é de Manaus? Deve ser algum índio de lá!” (Risos).

AAR – Você se referiu ao grafiteiro Arab que levou o picho pra Manaus. Mas o reconhecimento dele na cena do grafite é muito forte. Qual a sua opinião a respeito dele?

R – Isso mesmo. Ele começou com o picho. Mas a união dele com o grafiteiro Box, um ex-Bboy, foi muito importante pra cena de Manaus. Eles começaram a produzir muitos grafites coloridos. Assim como Árab, o Eric Nommad também contribuiu muito pra o crescimento do grafite da cidade. Hoje ele carrega um estilo bem original da terra dele, aplicando os conhecimentos da arte marajuara pra fazer os grafites, uma técnica denominada como iconografitemarajuara. Atualmente ele é a principal referência de Manaus.

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Raiz e o paulista MAO, na Avenida Contorno, Salvador

AAR – Como a população reage ao ver o seu trabalho?

R – De forma muito curiosa. A cada momento que alguém pergunta sobre o meu trabalho eu procuro me expressar de maneira que seja entendido. Por exemplo: O personagem tem uma casa de pássaro na cabeça. Então vem a pergunta: “Qual o significado desse pássaro na cabeça do personagem?” Interessante que a galera só olha pra cabeça, mas não percebe que tem um tronco. Então explico: “Os pássaros não fazem suas moradas nas árvores?… Então procuro através desse desenho denunciar a destruição das árvores e também das moradias dos pássaros”.

AAR – Durante sua estadia em Salvador, além da expo no Musas, você deixou registrado a marca do seu personagem em algum espaço público?

Sim. Fiz um na parede de um imóvel nas imediações da Conceição da Praia e um enorme na coluna do viaduto da Avenida Lafaiete Coutinho (Contorno), acesso para a Comunidade do Unhão. Participei de dois mutirões, pintando outras temáticas, sendo um na Ladeira da Preguiça com o pessoal da Nova10Ordem e outro em Cajazeiras 7, organizado pelo grafiteiro Tial. Também pintei em parceria com o grafiteiro paulista MAO.

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Obra de arte existente no acesso a Comunidade Solar do Unhão/Avenida Contorno, Salvador

AAR – Qual a mensagem que você quer deixar?

R – Volto a afirmar que eu e Renatinha ficamos apaixonados por Salvador. Saímos de Manaus pra fazer um rolê com a finalidade de conhecer, divulgar, compartilhar e apresentar a arte manauara em Salvador. Chegamos pra somar. Quero deixar registrado através dessa entrevista, o excelente acolhimento que tivemos da galera do Musas (Nova10Ordem). Eles nos deram muita força, inclusive liberando o espaço pra realização da minha primeira exposição das pinturas que foram produzidas em Salvdor. Todo amor e luz de Jah.

Conheça mais sobre os trabalhos do grafiteiro Raiz através do

https://www.facebook.com/#!/raiz.campos/photos_stream

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