Entrevista com a historiadora brasiliense Renata Almendra

Foto: Divulgação

Almendra: “O grafite está trazendo novas leituras do mundo que até então não existiam”

A professora e escritora brasiliense Renata Almendra, 40, casada, graduada, mestranda, muito próxima de ser doutoranda em História, além das especializações em Artes Visuais e Educação, é a entrevista do blog “A Arte na Rua”. Almendra publicou no ano passado o livro “Entre cores e utopias: o grafite em Brasília e seus arredores” com imagens da arte urbana nas ruas do Plano Piloto e das cidades satélites do Distrito Federal (DF). Conforme explicou a ideia do livro surgiu em 2013, quando viajou para Bogotá, na Colômbia. “Fiquei completamente louca! Os grafites do local são painéis gigantes. (…) bem interessantes, altos e diferenciados que me fez trazer esse pensamento para Brasília”. E continua: “O grafite em Brasília cresceu muito e é muito pulsante. Esse interesse me fez olhar para o meu canto”.

Leia a entrevista e conheça mais sobre o livro da historiadora Renata Almendra:

A Arte na Rua – Você lembra quando lhe despertou o interesse pela arte urbana?

Renata Almendra – Eu sempre tive, apesar de não ser artista infelizmente, eu sempre tive um olhar muito voltado para arte. Minha família materna inteira é cheia de artistas, músicos, artes cênicas, artes visuais. Eu nasci nesse meio, com esse olhar bem aguçado para arte que nos envolve. A arte urbana foi surgindo, foi aumentando e fui me ligando nela cada dia mais. Mas confesso que esse desejo maior de conhecer mais sobre a arte urbana veio a partir de uma viagem que fiz em 2013. Eu fui para Colômbia e passei uma semana em Bogotá. Lá, fiquei completamente louca! Os grafites do local são painéis gigantes, laterais de prédios. Saí circulando de táxi e ônibus pela cidade, vendo aqueles andaimes com aqueles meninos fazendo a arte nos prédios. É uma arte muito ligada àquele território, referência de uma ancestralidade indígena. Grafites bem interessantes, altos e diferenciados que me fez trazer esse pensamento para Brasília. Nossa! Como é na cidade onde moro? Como é essa relação do grafite com o território, com a cidade? Como é que é isso? Aí, foi me instigando até um ponto que a ideia do livro nasceu nesse momento. Eu vou registrar esse grafite em Brasília, que também é muito especial, por ser uma cidade modernista, planejada. Isso deixa ela singular, diferente de outras cidades mais tradicionais. Brasília, criada pelos traços de Lúcio Costa, é uma cidade bem diferente. A gente tem essas críticas de que Brasília não tem rua, não tem esquina, não tem praça, não tem parede, os prédios residenciais todos têm pilotis (suspenso por pilares, elevados do nível do solo), então a ausência de paredes nos prédios, não formam ruas nem muros cegos. Então, cadê o grafite na cidade? O grafite em Brasília cresceu muito e é muito pulsante. Esse interesse veio a partir dessa viagem mesmo que me fez olhar para o meu canto.

AAR – A partir daí o que lhe chamou mais atenção?

RA – É o que justamente estou dizendo: é onde o grafite se encaixa nessa cidade diferente. Ele está em viadutos, está nas passagens subterrâneas, que são locais temidos para quem vai atravessar de um ponto para outro das Asas Sul e Norte. Quem vai passar por baixo do Eixão usa essas passagens que são galerias de grafites, além de outros pontos da cidade que acabam tendo essa referência maior.

AAR – As intervenções surgiram primeiro nas cidades satélites?

RA – Eu acho que surgiram juntos. As cidades satélites por serem periferia, claro que sempre tiveram a manifestação do Hip Hop mais forte. Ceilândia, por exemplo, é uma cidade satélite que tem esse movimento desde a década de 80. Nela foi lançada uma das primeiras crews de grafite que se chama DF Zulu, um grupo de Hip Hop da cidade que tem representantes no grafite, break, DJ, e todas as manifestações relacionadas à essa cultura. O grafite nas cidades satélites é muito forte, mas, também no Plano Piloto em Brasília. Pelo fato de o Plano ser o centro administrativo e agregar o lugar de trabalho de muita gente, mesmo de quem mora nas cidades satélites, torna-se o lugar onde as pessoas circulam durante o dia. Querendo ou não, quem vive nas satélites circula pelo Plano. O contrário não acontece, o pessoal do Plano não circula tanto pelas satélites. Então o Plano acaba sendo o lugar de grande visibilidade do grafite. O pessoal sai das cidades satélites e vem grafitar muito no Plano Piloto.

AAR – Existe muita pichação na cidade? São riscadinhos ou letras? 

RA – Existe sim um movimento de pichação em Brasília. Não é tão forte como em São Paulo, Rio, Recife… não conheço muito Salvador. O movimento do picho aqui não é tão forte. Já foi bem mais forte na década de 90, período em que a juventude de Brasília estava muito ligada as questões de gangues, marcação territorial. Isso já foi muito forte na cidade e o picho acompanhava essas marcações territoriais. Claro que ainda existe o movimento do picho, a gente tem alguns grupos grandes que envolvem pessoas de várias cidades satélites do mesmo grupo, que é a LUA (Legião Unida pela Arte), um grupo de picho, a GDF (Grafiteiros do Distrito Federal), dentre outros. Enfim, tem bastante pichação sim, porém não é muito forte como em outras capitais. Quanto aos riscadinhos ou letras, são letras tentando também ter uma identidade diferenciada, buscar uma tipografia diferente.

AAR – Qual o artista urbano se destaca na cidade pelo traço, estilo e técnica?

RA – Eu acho tão variado isso. Temos muitos representantes em cada linguagem do grafite. Se a gente fosse classificar algumas questões, tem representantes para cada uma delas. O expoente do Hip Hop, do grafite de Hip Hop no DF, tem uma representação forte com pessoal do DF Zulu e do Reforçus Break. Tem um pessoal que é de um grupo chamado Coletivo Transverso que fazem estêncil com poesias e colocam em locais fundamentais da cidade, mudando o pensamento dos transeuntes. Posso citar também alguns grafiteiros que são reconhecidos por terem personagens muito marcantes. Por exemplo, tem um grafiteiro daqui que ele é muito “pilhado”, está em todos os lugares, o que deixa ele bastante marcante. Talvez ele seja o mais conhecido mais pela insistência dele no grafite, não que seja o melhor. Então, isso varia bastante. Claro que esses que conseguem uma evidência maior na rua, eles passam a ser convidados a fazer outros trabalhos. Eu vejo que tem muita gente que de tanto ver alguns personagens grafitados na rua, passam a reconhecê-los em tantos lugares, que começam a falar: “quero para mim”. Então tem lanchonetes da cidade que recebem os mesmos traços desses grafiteiros, quarto de criança, muros de residências (risos). E isso vai aumentando o escopo de trabalho comissionados para essas pessoas. Outros não são tão frequentes de se encontrar na cidade, mas tem um trabalho muito forte em rede social. Existe aqui um personagem muito marcado na cidade que se chama “Gurulino”, que é um personagem criado por um artista e professor de Yoga que traz sempre reflexões interessantes. Ele nem está em todos os lugares, mas está tão forte nas redes sociais pelas mensagens que ele passa que também acaba sendo uma referência, como um personagem da cidade.

AAR – O estado promove ações em escolas com a participação de grafiteiros?

AR – Sim, promove. Muitas vezes esses projetos são dos próprios grupos de grafites. Esse grupo DF Zulu, como eu te falei e muitos outros apresentam projetos nas escolas. Esses projetos são aprovados e existem ações sim. Um dos principais lugares dos grafites nas cidades satélites são os muros de escolas. Uma vez conversando com o Coordenador Regional da Secretaria de Educação da cidade da Ceilândia, ele explicou como o grafite é importante na escola até para trazer para os alunos a questão do pertencimento. Ele disse que os alunos passam a ver esse lugar como seu patrimônio, defendendo aquele espaço até contra o picho. Então, existe sim esse contato do estado com as escolas em relação ao grafite. E no momento a Secretaria de Cultura do Distrito Federal está também com um projeto dentro de uma subsecretaria de Diversidade que está criando um Fórum de Grafiteiros do DF para inseri-los em ações de grafitagem na cidade e em alguns espaços culturais. Essa ação também está sendo interessante.

AAR – Como surgiu a ideia do livro?

RA – Surgiu a partir da viagem que eu te falei pra Bogotá e nessa reflexão do grafite nessa cidade. Fui gestando um pouco essa ideia. Fiquei nessa gestação pensando. Não sou fotógrafa, mas tenho um olhar aguçado. Eu não queria uma foto do grafite pelo grafite, mas uma foto do grafite dentro do contexto urbano, justamente para trazer um pouco dessa discussão de Brasília, dessa singularidade da cidade. Então, eu fiquei por muito tempo ali sozinha gestando essa ideia, pensando como eu poderia fazer com esse acervo de imagem que queria criar. Pensei inicialmente em juntar vários fotógrafos, vários colegas que sei que curtem o grafite e fotografam por aí e divulgam pelas redes ou chamar amigos fotógrafos profissionais para fazer essas imagens. Mas por outro lado esses fotógrafos profissionais talvez iriam querer impor seu olhar. Mas eu queria o meu olhar no livro, bem egoísta (risos). A ideia era minha.

 AAR – E a parceria como se deu?

RA – Juliana é minha amiga de infância, é arquiteta e urbanista, tem um trabalho bem bacana no urbanismo. Ela tinha chegado de uma viagem e estava mostrando as fotos da viagem, belas imagens em alta resolução. Ela já fez muitos cursos nessa área. A fotografia é uma paixão que ela sempre teve, mas como hobby. Eu fiquei impressionada com o olhar dela, o olhar que estava traduzindo o que eu queria que o livro tivesse. Mas eu gostei muito da sensibilidade que vi nas fotografias dela. Aí nós conversamos, eu contei minha a ideia para ela e ela inicialmente ficou até assustada. Mas aí eu fiquei super feliz pois quando a gente se encontrou novamente ela já tinha feito um monte de fotos dos grafites da cidade para me mostrar e saber se estava no caminho, se estava do jeito que eu estava pensando. E estava. Pelo fato dela ser arquiteta e urbanista ela circula muito por Brasília e pelas cidades satélites por conta do seu trabalho. Então ela acoplou a câmara fotográfica dela no carro e onde ela ia já fazia esses registros. Essas imagens do livro foram feitas todas entre 2015 e 2016. Foi o tempo que a gente se deu para fazer um acervo mesmo. Foram mais de 3 mil fotos e no livro só deu para entrar 120 (risos), mas foi o tempo de ir criando essas imagens e procurando concorrer a editais para conseguir essa publicação.

AAR – Contou com apoio financeiro de instituições governamentais para tocar o projeto?

RA – Eu contei. A gente inscreveu o projeto no edital chamado FAC (Fundo de Apoio à Cultura) da Secretaria de Cultura do DF, na área de publicações em Artes Visuais e conseguiu ser aprovado. Recebemos uma verba que deu para fazer a impressão do livro, pagar um designer gráfico, assessoria de imprensa e uma produtora para ajudar a tocar tudo. Foi bem bacana. Na verdade, bem maravilhoso porque foi o que viabilizou a gente fazer esse livro. A resposta foi muito boa, sendo divulgado em vários jornais locais. Além disso, a resposta dos grafiteiros também foi bacana, muito interessante, porque querendo ou não foi o primeiro livro de grafite de Brasília, um primeiro catálogo de imagens de fotos dos grafites em Brasília. Se verem reconhecidos nesse trabalho foi muito importante para os grafiteiros.

AAR – Foi fácil o diálogo com os artistas que fazem parte do livro?

RA – Foi. Todos eles estavam abertos porque foi a primeira publicação nessa área. Paralelamente a isso, em 2016, eu fiz a minha seleção para o doutorado em História Cultural na Universidade de Brasília (UNB) já querendo trabalhar o grafite de Brasília. Minha proposta de tese foi essa. Foi aprovado. Então, nesse momento eu já comecei a fazer entrevistas sistematizadas com os grafiteiros, porque uma das metodologias que estou usando na minha tese é a metodologia da história oral. As entrevistas buscam relatos dos grafiteiros, considerados como sujeitos históricos que compartilham suas experiências, suas vivências e suas práticas em relação a sua cidade. Eles ficam muito felizes em serem reconhecidos mesmo como sujeitos históricos, que deixam sua contribuição para cidade, tudo dentro dessa perspectiva. O livro chegou meio que junto na esteira dessa pesquisa. Caminhou bem paralelo e a aceitação é muito boa, o diálogo com todo mundo, seja do Plano ou das satélites, tem sido muito legal.

AAR – Quais resultados você percebe com a distribuição da publicação em escolas?

RA – Foram publicados mil exemplares do livro, sendo que 400 foram distribuídos pelas escolas de todo DF. A aceitação foi boa, conseguimos conversar com cada Coordenador Regional de Ensino que trouxe as experiências daquela cidade satélite com o grafite. Para falar a verdade, esse contato da palestra/oficina com a escola não veio imediatamente. Está aparecendo muito agora. Eu acho que é um tempo para as coisas se encaminharem.

AAR – Por exemplo, convites para palestras, realização de oficinas?

RA – Eu tenho dado muita palestra em escola sim. Oficinas eles pedem, mas eu só posso intermediar. Eu não sou grafiteira (risos). As escolas já têm contatos com grafiteiros em cidades satélites que trabalham com as escolas. Então, isso não acontece tanto. Me chamam mais para dar palestra, participar de debates e atuar na mediação de roda de conversa com grafiteiros. Ultimamente participei como mediadora de uma roda de conversa com meninas do grafite num evento bacana que aconteceu em Brasília. Esses convites têm acontecido.

AAR – Além do seu livro, existe outra publicação sobre o tema?

RA – Esse ano, eu acho que tem três meses, um grupo de artistas, na verdade todos são formados em artes, chama-se Coletivo Transverso. É um grupo daqui de Brasília que trabalha com estêncil e com essa técnica eles colocam poesias em vários lugares da cidade. Já falei antes deles para você. Eles também conseguiram financiamento do FAC e fizeram uma publicação bem bacana com trabalhos deles. Até agora onde eu sei tem o meu livro que é esse catálogo mais geral do grafite em Brasília e o livro específico desse Coletivo Transverso.

AAR – Na sua opinião, o grafite deixou de ser uma arte transgressora?

RA – Eu acho que a gente está nesse processo sim. Eu acho que tem deixado de ser uma arte transgressora. Já está muito mais aceito pela cidade e pelo cidadão. Já não é uma coisa mal vista. Já não é comum que se chame a polícia em ver alguém colocando uma arte em algum lugar que não seja o portão da sua própria casa (risos). Então, eu acho que tem deixado de ser uma arte transgressora sim, inclusive tem entrado mais nos museus e nas galerias, que até então eram lugares legitimados pela tradição de onde estava arte. Até por isso muitas dessas pessoas que não conseguiam entrar nesses lugares, conseguiram uma visibilidade maior atuando nas ruas. Mas é um processo. Acho que ainda não deixou de ser transgressora, mas está nesse limiar.

AAR – O grafite transformou o cenário urbano de Brasília?

RA – Eu também acho que isso também é um processo. Um dos objetivos quando lancei o livro, eu vi que eu tinha esse olhar muito forte para o grafite, mas isso não acontecia com pessoas que conviviam comigo. Às vezes eu chegava no trabalho e falava com algum colega: nossa, você viu que apareceu um grafite do fulano ali na parada de ônibus aqui da frente? Aí me respondiam: “Não, não vimos! Quem é fulano?” Não tinha essa questão de já relacionar o trabalho com o artista ou perceber os lugares onde ele ia sendo inserido. Eu via que isso era muito meu. Para mim era tão evidente, pois os grafites estavam mudando meu olhar pela cidade, alterando os meus caminhos. Falei: “eu preciso compartilhar isso com as pessoas”. Eu tinha essa ambição de tentar mudar o olhar das pessoas para cidade onde elas vivem. Acho que o meu objetivo mais singelo, digamos assim, mais pretensioso com o livro foi esse. O grafite ainda não transformou o cenário urbano de Brasília não, porque ainda tem gente que não enxerga o grafite daqui. Mas a gente está nesse processo também.

AAR – Deixe uma mensagem sobre o papel do grafite nos tempos atuais.

RA – Eu acho que a gente está em constante crescimento. Como estou no meio acadêmico, fazendo um doutorado sobre esse tema, vou vendo que o grafite está sim, sendo inserido na academia, nas pesquisas, seja em comunicação, semiótica, literatura, história que é onde estou, psicologia, letras, sociologia. Li recentemente uma tese interessante sobre grafite na psicologia. Então o grafite está alcançando esse espaço acadêmico, está alcançando esses espaços como lhe falei mais legitimados pela tradição da arte, os museus, as galerias. O grafite está trazendo novas leituras do mundo que até então não existiam. Mas está numa mudança crescente mesmo. Vamos ver aí o que vai ser (risos).

(Fotos: byLígia Ferreira. Direitos reservados. Denuncie abusos).

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